Assistindo ao Jornal Nacional, fui surpreendido por uma matéria com a chamada afirmando, com base em dados da sonda Rosetta, que “a água da Terra não veio dos cometas”. A primeira razão da surpresa, muito agradável, foi ver uma história de ciência ganhando o disputado espaço no principal jornal da TV aberta brasileira. Já a segunda, infelizmente não tão agradável, foi ver como neste espaço exíguo, de não mais de 30 a 60 segundos, a matéria fez afirmação tão peremptória, obviamente deixando de lado o intenso debate da comunidade científica em torno da questão e as várias reportagens recentes exibidas pelo próprio telejornal e outros veículos, o Globo aqui incluído, sobre a missão Rosetta-Philae e sua importância na busca de pistas sobre a origem da água e até mesmo da vida em nosso planeta.
Diante disso, acho que cabe aprofundar um pouco mais esta questão aqui, começando, como se deve e com perdão da redundância, do começo. Isso nos leva a cerca de 4,6 bilhões de anos atrás, quando a Terra ainda estava se formando. Neste período, conhecido como Era Hadeana (referência a Hades, termo que designa tanto o deus quanto o reino do submundo “infernal” dos mortos na mitologia grega) e que se estendeu até uns 4 bilhões de anos atrás, nosso planeta seria tão quente que quase toda água que estivesse presente na nuvem de material que o formou evaporou e escapou de volta para o espaço. Hoje, porém, três quartos da superfície da Terra são cobertos por água, o que motivou a pergunta que dá título a este post: então, afinal, de onde veio a água da Terra?
Neste cenário, a resposta lógica a esta pergunta é simples: ela deve ter sido trazida a nosso planeta do espaço depois que ele esfriou, provavelmente pela colisão com cometas e asteroides. Durante décadas, e por razões também lógicas, os cometas foram os principais suspeitos de terem contribuído com a maior parte desta água, já que têm grande proporção de gelo na sua composição, com estimativas apontando para até mais de 70% do total hoje presente no planeta. O restante teria vindo com os asteroides, que apesar de serem basicamente grandes rochas ou aglomerados de rochas espaciais também contêm um pouco de água, e ficado do pouco que a Terra conseguiu reter durante sua fase infernal.
Com o avanço tecnológico da Humanidade, pudemos finalmente começar a colocar à prova esta hipótese com missões para estudar os cometas de perto. Da pioneira ICE, da Nasa, em 1978, à europeia Rosetta, passando pela Giotto, Stardust e Deep Impact, sondas e observatórios espaciais já analisaram as características da água presente em 11 cometas e descobriram que em nada menos que 10 deles ela é “diferente” da encontrada na Terra.
Mas como assim, água “diferente”? Não é tudo igual? Bem, não exatamente... A água é composta de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, mas estes átomos apresentam variantes mais “pesadas”, isto é, com um ou mais nêutrons extras, conhecidas como isótopos. No caso do hidrogênio, o mais comum é o chamado deutério, cujo núcleo é composto pelo habitual próton mais um nêutron. Os cientistas conhecem a proporção de deutério na água da Terra e agora a nestes 11 cometas, o que lhes permitiu chegar à conclusão de que elas são “diferentes”. E é isso que sugere que, ao contrário do que se pensava, a água no nosso planeta não veio majoritariamente dos cometas.
Assim, voltamos à questão inicial: de onde veio toda essa água na Terra? Bom, primeiro temos que ter em mente que a amostragem que temos, de apenas 11 cometas, ainda é muito pequena para se chegar a uma conclusão definitiva sobre seu papel neste processo. Segundo, que estes cometas têm origens diferentes, alguns vindos da Nuvem de Oort, a gigantesca esfera de restos gelados da formação do Sistema Solar que o circunda a uma distância que vai a até mais de um ano-luz, e outros do Cinturão de Kuiper, o imenso espaço nem tão vazio que vai da órbita de Plutão até a esta nuvem. Terceiro, que em pelo menos em um deles, o 103P/Hartley 2, a composição da água é similar à da Terra, o que implica que ele pode ser um dos poucos remanescentes da população original dos objetos do tipo que trouxeram a água para nosso planeta.
Por outro lado, análises de meteoritos que caíram na Terra indicam que a água neles bate com a proporção de deutério na água terrestre, e mesmo tendo tão pouco dela, um bombardeio grande o bastante deles poderia encher os oceanos do planeta (abaixo, imagem mostra o que aconteceria se pudéssemos fazer uma esfera com toda a água do planeta). Com tudo isso, cresce a suspeita contraintuitiva de que foram os asteroides, e não os cometas, que trouxeram a maior parte da água da Terra. O fato é que provavelmente sua origem foram mesmo os cometas E asteroides, e o verdadeiro mistério é saber em que proporção cada tipo de objeto contribuiu. Como podemos ver, ainda há um longo caminho a percorrer antes de resolver este debate...