Os remadores que venceram Hitler

© Nordica livros A equipe de remo dos EUA que conseguiu o ouro em 1936.

Voltei à raia olímpica depois de muitos anos, para ler as últimas páginas de Meninos de Ouro (Editora Sextante), a extraordinária e comovente história da equipe de remo que humilhou Hitler e assombrou o mundo. Com o livro debaixo do braço, desci ao atracadouro e me sentei na madeira úmida sentindo um nó na garganta. Não voltava à raia desde a morte de Agustí Fancelli. Juntos, Agustí e eu passamos muito tempo remando naquelas águas calmas. Fugíamos do jornal ao meio-dia e embarcávamos para remar no largo espelho brilhante sobre o qual o céu se refletia.

Tudo acontecia como de costume. Andorinhas e maçaricos capturavam insetos na margem, perto da qual flutuava um casal de patos; canoas e caiaques descansavam empilhados, prontos para cair, os coletes salva-vidas e os remos pendiam de seus suportes no barracão aberto. No meio da raia um barco de competição, longo e elegante, o remador deslizando ritmadamente para frente e para trás em seu banco, atravessava de forma limpa a superfície, como uma folha afiada abrindo uma ferida.

A raia olímpica da Catalunha, em Castelldefels, não é o circuito de remo de Grünau, no lago Langer See, no subúrbio de Berlim, que foi o palco em que se disputou a legendária regata de Meninos de Ouro, o maravilhoso livro de Daniel James Brown que relata um dos maiores feitos do esporte, levando o leitor muitas vezes à beira das lágrimas, mas quis o destino que o céu estivesse tão encoberto, e a água tão acinzentada quanto naquele 14 de agosto de 1936, durante os Jogos Olímpicos. Na ocasião, às seis da tarde, na final da prova da modalidade oito com timoneiro, nove jovens norte-americanos da classe trabalhadora –agricultores, pescadores e lenhadores do Estado de Washington– enfrentaram as melhores tripulações do mundo, incluindo a perigosa equipe alemã, que competia em casa com o apoio de 75.000 espectadores que gritavam e sob o olhar de Adolf Hitler, um estímulo e tanto. Vencendo todas as adversidades –entre elas, navegar na pior posição no lago, o desmaio do remador da popa, que estava febril, e não ter ouvido o sinal de partida–, os rapazes norte-americanos venceram a prova e levaram a medalha de ouro. Um deles, Bobby Moch, o timoneiro, era de família judia (seu pai lhe disse isso antes de sua partida para a Europa).

Hitler, que estava na tribuna de honra, de uniforme e com uma capa que parecia ter saído do filme Bastardos Inglórios, saiu furioso, talvez pensando que se vingaria invadindo a Polônia. Sorte que ainda era 1936, porque alguns anos mais tarde com certeza os remadores alemães teriam acabado no front russo, remando no rio Volga, por assim dizer. Hitler não sabia então que aqueles sujeitos norte-americanos fortes e simples, autênticos e otimistas, voltariam para lhe tirar mais do que uma medalha.

A vitória dos jovens norte-americanos naquela Berlim entregue ao mal foi um pequeno milagre, em vista das circunstâncias, e uma bofetada no regime nazista semelhante à dada nos mesmos Jogos pelo atleta negro Jesse Owens –obtendo quatro medalhas de ouro e derrubando o mito da superioridade ariana diante das barbas dos chefões do III Reich–, mas a história é muito menos conhecida. Brown a resgatou num dos livros mais emocionantes que li em muito tempo e que é um hino ao melhor do esporte e do espírito humano. Como um Carruagens de fogo com remos –como foi descrito–, é repleto de características épicas e de poesia.

“Quis descrever bem todos os aspectos técnicos do remo, claro, a mecânica da remada, os estilos”, explica Daniel James Brown, “mas me pareceu igualmente importante transmitir com o máximo realismo a experiência sensorial e emocional de remar. Daí eu ter falado com muitos remadores bons. Para mim era muito importante convencer o leitor que remar em cada situação provocava exatamente essas sensações e sentimentos que descrevo”. Quando digo que sua prosa parece influenciada por poetas como Robert Frost, demonstra muita satisfação. “Obrigado! Cresci lendo boa literatura. Uma vida lendo Shakespeare, Faulkner, Joyce e Dickens (e Cervantes, Borges e García Márquez!) me deu certa propensão à boa escrita. Mas na verdade conhecer esses rapazes, suas vidas, por meio principalmente de seus filhos e netos, foi o que me inspirou, me arrebatou o coração e me deu o combustível emocional para entender a história num nível profundo. Quando isso acontece, a boa escrita vem com bastante facilidade.”

Poucas vezes um esporte encontrou uma voz que o engrandeça tanto como faz aqui o autor com o remo, destacando seus valores sociais, morais e até espirituais. Mas na verdade é possível dizer que o livro fala tanto do remo quanto da vida. “Sim! Está absolutamente certo. Para mim, a história desses nove rapazes que entram no barco e aprendem a manejá-lo juntos de forma tão poderosa e bela é uma metáfora de tantas coisas na vida. A vida nos coloca num barco com outras pessoas o tempo todo, gostemos ou não. Na guerra, na política, nos negócios… E aprendemos a criar laços de confiança e afeto, e a remar juntos, e então metas que pareciam impossíveis se tornam atingíveis. Foi o que descobri escrevendo o livro e o que espero que os leitores entendam.”

Diferentemente dos rapazes fortões do barco, nós, Agustí e eu, na raia, naqueles dias, nunca fomos o que se chama de atletas –mais para uns amadurecidos e improváveis Tom Sawyer e Huckleberry Finn– , e nossa embarcação, de fibra de vidro barata e não do cheiroso cedro vermelho norte-americano, fazia água e até adernava. Mas conhecemos de passagem a grandeza e a brutal dureza do remo: as bolhas nas mãos, a dor nos músculos das costas ao final da remada, as cãibras, a luta contra o vento, contra o frio e o conformismo; o prazer de impor sua vontade à água e aos elementos, e o orgulho de superar a dor e o esforço, abraçados à camaradagem. Tudo isso, respeitando a enorme distância que há entre os heróis –como os da equipe norte-americana de 1936– e uns pobres aficionados como éramos, recuperei, com melancólica alegria, no livro de Brown. Que também é uma grande história de amizade, como são todas as grandes histórias.

Meninos de Ouro (The Boys in The Boat, no original em inglês) narra em 450 páginas lidas como um romance os acontecimentos que culminaram nesses seis minutos irrepetíveis da regata diante de Hitler. O autor recua a três anos antes, 1933, para nos levar inexoravelmente até o encontro no lago de Berlim e o momento em que o juiz dá o sinal para começar a competição. O caminho é longo e apaixonante, cheio de obstáculos e intrincado. Penetramos nos trabalhos, dúvidas, sofrimentos e satisfações desse pequeno band of brothers de remadores que conquistaram o impossível, ou pelo menos o muito improvável. Sem esquecer o treinador, Al Ulbrickson, e o construtor do barco, –o Husky Clipper, uma verdadeira obra de arte–, George Yeoman Pocock, poeta da matéria, cujas citações recheadas de filosofia abrem cada capítulo: “O remo é todo uma arte. A melhor arte que existe. É uma sinfonia de movimentos. Quando se rema bem, é algo que beira a perfeição. E quanto se beira a perfeição se toca o divino. É algo que toca o você de si mesmo. Que é a alma”.

Ao recontar a história desses rapazes, “com os quais era impossível não simpatizar e desejar que vencessem no final”, Brown se concentrou muito especialmente nas experiências de um deles, o mais outsider, Joe Rantz, um herói ferido e perturbado que conheceu pessoalmente. Por meio de todos eles, o autor traça com fôlego digno de um Tolstói um panorama de anos decisivos para os EUA e para o mundo.

Porque os nove rapazes do barco não remavam no vácuo. Faziam isso em tempos agitados pela Grande Depressão de 1929 e os regimes fascistas, rumo ao desastre da Segunda Guerra Mundial. O percurso de Joe Rantz, personagem que parece saído das fotos de Walker Evans, Dorothea Lange ou Ben Shahn, exemplifica o desenraizamento, a solidão, o abandono, a humilhação e a dor de toda uma geração perdida. Sua redenção graças ao remo depois de viver sem nada e se dedicar à pesca clandestina de salmão é uma belíssima lição de superação e coragem. Quando Brown o conheceu em 2007, era nonagenário e estava para morrer, mas conseguiu o tempo para contar sua história. Joe se pôs a chorar ao narrá-la. Quando Brown estava para ir embora, a filha do velho campeão pôs em suas mãos a medalha de ouro, que ficara anos desaparecida, tomada por um esquilo.

O remo era nos anos 20 e 30 um esporte muito popular nos EUA, atraindo multidões. Era praticado por pessoas tão diversas como Robert McNamara e Gregory Peck. Embora tivesse nascido com conotação classista (um esporte de cavalheiros) nas escolas particulares do Leste, ao estilo das instituições britânicas de elite como Oxford, Cambridge e Eton, difundiu-se no mundo rude do Oeste, longe do ambiente sofisticado de origem, em que abundavam as calças vincadas e os cardigãs.

Em 19 de outubro de 1944 –quarto ano da Grande Depressão, Franklin Delano Roosevelt na presidência, King Kong nas telas- ocorreu em Seattle, em um antigo hangar de hidroaviões transformado em pavilhão de barcos, a inscrição dos novos candidatos à equipe de remo da Universidade de Washington, que tinha a ambição –em rivalidade regional com a da Califórnia- de estar no auge desse esporte disputando o campeonato nacional com as veteranas e mais sofisticadas equipes do Leste. Entrar no time significava para rapazes como Joe –que foi expulso de casa aos 10 anos- escapar de uma vida de miséria e poder estudar. Mas só havia nove vagas no barco, e a competição era enorme. As belas embarcações, caras como um Cadillac, eram longas e delicadas, com remos duas vezes mais altos que os jovens, e navegar nelas exigia muita técnica, que só se conseguia com inúmeras horas de treinamento e sacrifício, e uma vontade indomável. Nessas horas escuras e anônimas, cheias de dor, com chuva e neve, começou a se forjar a equipe que derrotaria os melhores remadores do mundo. A fórmula do sucesso de Washington consistiu em dispor de um barco esplêndido –construído a partir do melhor da natureza norte-americana e com técnicas dos índios do Noroeste-, uma remada revolucionária e um material humano sem igual: esses nove rapazes eram magníficos, capazes de se fundir em uma única entidade sintonizada com a água.

Entretanto, na Alemanha, Hitler estava certo de que receber os Jogos era uma boa ideia, ainda que exigisse alguns ajustes nas ruas, transformar provisoriamente os SA em guias turísticos e deixar os judeus tranquilos, por ora. Goebbels e Leni Riefenstahl –que gravaria a regata para seu filme Olympia- já começavam a brigar porque à segunda o Führer dava liberdade total para apresentar ao mundo a imagem do nacional-socialismo. “Para mim foi uma sorte que Riefenstahl tenha feito boas imagens do dia da prova”, diz Brown. “Dispor desse material me proporcionou uma boa amostra de como estava a atmosfera naquele dia. A trilha sonora também foi muito útil, porque pude escutar o rugido da multidão. Mas devo dizer que a maioria dos detalhes do que aconteceu procedem não do filme de Riefenstahl, mas dos próprios diários dos rapazes e de suas cartas para casa. Foram impagáveis para mim, ao me permitirem ser capaz de descrever a tensão e as emoções no barco. Isso é drama de verdade!”

Os nove rapazes de Washington ganharam o direito de ir a Berlim vencendo todas as provas preliminares e o campeonato nacional. Ainda tiveram que vencer outras adversidades, como os problemas de financiamento da viagem. Mas conseguiram finalmente chegar a Berlim, onde os nazistas tinham preparado a cidade para mostrar as conquistas do regime. “Bem-vindos ao III Reich, não somos o que dizem”, proclamava um letreiro com a malvada ingenuidade dos marcianos de Mars Attacks! Enquanto passeavam pela cidade, quando alguém lhes dizia um “Heil Hitler!”, os rapazes respondiam com “Heil, Roosevelt!”. Um dia treinaram com penas de índios. Após se classificarem, chegou o momento da competição pela medalha de ouro, contra a Alemanha (que já havia conquistado cinco nos dias anteriores em outras categorias do remo), Itália, Grã-Bretanha, Hungria e Suíça. O Husky Clipper foi posto na água após receber uma aplicação por baixo de uma camada de óleo de cachalote. Largaram mal, mas se recuperaram em uma prova inesquecível e cruzaram a linha de chegada seis décimos de segundo à frente dos seguintes, os italianos, e um segundo antes que os terceiros, os alemães, com suas camisetas decoradas com a águia negra e a suástica.

Enquanto entardecia no canal de Castelldefels, li as vibrantes páginas finais sobre a corrida pensando que eram o clímax do livro, mas depois cheguei ao epílogo. Os rapazes voltaram transformados em heróis e retomaram suas vidas. No ano seguinte, voltaram a conquistar o título nacional em Poughkeepsie, confirmando que eram a melhor equipe de remo de oito da história. Naquela época já tinham remado o suficiente para ir de Seattle ao Japão. Depois, a cada aniversário da regata de Berlim, pegavam seu barco e remavam no lago Washington. Em 1971, reduzidos a oito pelo câncer, se reuniram para remar juntos e posaram para os fotógrafos com o torso desnudo e empunhando os remos para um remake da foto da juventude. Estavam barrigudos, os ombros caídos e o cabelo branco, mas se saíram bem. Cinquenta anos depois de sua vitória, em 1986, empurraram de novo o Husky Clipper, subiram com cuidado no barco e, enquanto o timoneiro, Bobby, gritava no velho megafone, colocaram os remos na água e começaram a deslizar. “Remando sempre como um só homem, foram atravessando a água que o sol do meio da tarde lustrava como se fosse bronze. Depois, ao final da tarde, subiram a rampa até o pavilhão, saudaram os fotógrafos e colocaram pela última vez os remos nas prateleiras”. Gravei essa imagem que se fundia com minhas recordações e levei para casa uma frase final do livro enquanto a luz se apagava na superfície do canal: “E assim morreram, queridos e lembrados por tudo que foram: não só remadores olímpicos, mas pessoas boas”.

elpaissemanal@elpais.es

Jacinto Antón

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